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A Nota Comercial como mais um direito creditório objeto de operações de fomento

Em 30/09/2022, a ANFAC divulgou a Circular no 025, recomendando fortemente que a Nota Comercial não seja utilizada nas operações de fomento comercial. A Circular em comento, veicula o entendimento no sentido de que a Nota Comercial não constitui um direito creditório, mas, um título privado de dívida, razão pela qual não poderia ser objeto de aquisição por Factorings, Securitizadoras e até mesmo FIDCs. Com toda vênia da Entidade que representa o segmento com excelência e desde o seu surgimento no Brasil, ousamos discordar da Circular ANFAC no 025, pelas razões expostas neste artigo.

1 – A Nota Comercial não se confunde com o commercial paper.

A expressão “notas comerciais” foi utilizada pela primeira vez na Lei no 6.385/76, alterada pela Lei no 10.303/2001, como um valor mobiliário, vejamos:

Art. 2o São valores mobiliários sujeitos ao regime desta Lei: (Redação dada pela Lei nº 10.303, de 31.10.2001)

A CVM regulou a emissão e distribuição da nota comercial, como valor mobiliário, por meio da Instrução CVM nº 566, de 31 de julho de 2015, porém, utilizou a denominação nota promissória.

Com efeito, o chamado commercial paper pode ser emitido como uma nota promissória comum, e pode ser distribuído observando a Instrução CVM nº 566/2015, com prazo de vencimento máximo de 360 (trezentos e sessenta) dias, contado da sua emissão, não sendo permitidas amortizações, e só podem ser adquiridas por investidores qualificados ou profissionais.[1]

A Nota Comercial objeto deste artigo, foi criada pela MP 1.040/2021, convertida na Lei no 14.195, de 26 de agosto de 2021, e não é emitida como nota promissória, muito pelo contrário, possui Termo de Emissão cujo modelo padrão já foi divulgado pela ANBIMA.[2]

Com efeito, a Lei no 14.195/2021 trouxe um regramento próprio para a Nota Comercial, separando-a totalmente da antiga nota promissória comercial ou commercial paper, por isso, advogamos que a Nota Comercial não pode ser confundida com a já conhecida commercial paper.

Esse entendimento é corroborado pela CVM através do Ofício nº 6/2022/CVM/SER[3].

2 – A natureza jurídica da Nota Comercial

A Nota Comercial é, ao mesmo tempo, um valor mobiliário e um título de crédito, como o próprio legislador expressou no art. 45 da Lei no 14.195/2021:

Art. 45. A nota comercial, valor mobiliário de que trata o inciso VI do caput do art. 2º da Lei nº 6.385, de 7 de dezembro de 1976, é título de crédito não conversível em ações, de livre negociação, representativo de promessa de pagamento em dinheiro, emitido exclusivamente sob a forma escritural por meio de instituições autorizadas a prestar o serviço de escrituração pela Comissão de Valores Mobiliários.

Como valor mobiliário, a Nota Comercial representa um título privado de dívida, emitido por sociedades anônimas, limitadas ou cooperativas, como instrumento de auto financiamento, tendo como causa ou lastro a atividade econômica e o patrimônio da empresa emissora.

Como título de crédito, a Nota Comercial representa sim um direito creditório, com a mesma natureza de uma Nota Promissória, de uma Debênture ou de uma CCB, porque representa uma promessa de pagamento feita pela empresa emissora (sociedade anônima, limitada ou cooperativa) em favor do beneficiário (investidor ou titular).

A Lei no 14.195/2021 dispõe expressamente que a Nota Comercial é título executivo extrajudicial, que enseja a cobrança do crédito por meio da execução judicial, independentemente de protesto (art. 48).

Portanto, a Nota Comercial constitui um título privado de dívida, de renda fixa, mas, não deixa de ter a natureza jurídica de um título de crédito, no conceito célebre de Cesare Vivante, que foi adotado pelo Código Civil brasileiro, no art. 887.[4]

3 – A Nota Comercial como objeto das operações de fomento

Iniciamos a exposição do tema lembrando os princípios da legalidade e da livre iniciativa, previstos na Constituição Federal de 1988.

O princípio da legalidade está previsto no art. 5º, inciso II, e dispõe que “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”

O princípio da livre iniciativa está previsto nos artigos 1º, inciso IV, e no 170, e dispõe que “É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei.”

Considerando apenas esses princípios constitucionais, já podemos pontuar a licitude da operação de aquisição de Notas Comerciais pelas empresas de fomento, securitizadoras e FIDCs, simplesmente porque não há lei que proíba expressamente essa operação.

Por certo, é claro que uma Factoring, uma Securitizadora, e também um FIDC, podem reservar uma parte de seu capital para investir em títulos de dívida e valores mobiliários, e até mesmo em títulos públicos, situação muito comum no mercado de FIDCs para enquadramento de carteira a longo prazo.

Analisando cada uma das estruturas do mercado de recebíveis em espécie, chegaremos à mesma conclusão, já pontuada com base nos princípios constitucionais acima invocados.

Em primeiro plano, analisando a empresa de fomento mercantil, pontuamos que ela não possui uma lei ou um regulamento próprio, sendo conceituada pela Lei nº 9.249/95,[5] no Artigo 15, inciso III, alínea “d”, nos seguintes termos:

Prestação cumulativa e contínua de serviços de assessoria creditícia, mercadológica, gestão de crédito, seleção de riscos, administração de contas a pagar e a receber, compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços (factoring).

Se tomarmos o conceito da Lei nº 9.249/95 ao pé da letra, a Factoring só poderia adquirir duplicata e cheque, não poderia adquirir créditos originados por atividades que não se enquadram nos conceitos de vendas mercantis ou prestação de serviços, o que inclui o cheque e o cartão de crédito originado das relações de consumo, a própria CCB, que é um título do segmento financeiro, a locação e os contratos imobiliários, o agronegócio, além de outros segmentos.

Portanto, não pode ser literal a interpretação da atividade de fomento no mercado, sob pena de exclusão de diversos recebíveis que não se enquadram no conceito de compra e venda mercantil ou prestação de serviços.

Ora, se a Factoring pode fomentar o processo produtivo do cliente, mediante a aquisição de créditos futuros e a constituir, não há razão para considerar ilícita a aquisição de uma Nota Comercial, para lastrear o capital investido justamente no processo produtivo do cliente, e com muito mais segurança jurídica. Se a Factoring pode adquirir uma CCB, título do segmento financeiro, que não se enquadra dentro da compra e venda mercantil ou da prestação de serviços, não há razão jurídica para lhe vedar a aquisição da Nota Comercial, assim como não há razão jurídica para vedar a aquisição de qualquer outro título de renda fixa, seja privado como o CRI ou o CRA, seja público, como as NTNs.

Em segundo plano, a securitização de direitos creditórios foi contemplada com um novo marco legal, promulgado pela Lei no 14.430/2022, sendo conceituada no parágrafo único do art. 18, nos seguintes termos:

Parágrafo único. É considerada operação de securitização a aquisição de direitos creditórios para lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis ou outros títulos e valores mobiliários perante investidores, cujo pagamento é primariamente condicionado ao recebimento de recursos dos direitos creditórios e dos demais bens, direitos e garantias que o lastreiam.

O conceito legal menciona apenas a expressão “direitos creditórios”, sem qualquer vedação a qualquer título de crédito.

E como a própria Lei da Nota Comercial dispõe que ela constitui um título de crédito, em outras palavras, um direito creditório, entendemos que a Secutirizadora pode adquiri-la para lastrear a emissão de Certificados de Recebíveis ou Debêntures.

Em terceiro plano, os FIDCs são regulados pela ICVM 356/2001, que dispõe expressamente no art. 2º o seguinte:

Art. 2o Para efeito do disposto nesta instrução, considera-se:

I – direitos creditórios: os direitos e títulos representativos de crédito, originários de operações realizadas nos segmentos financeiro, comercial, industrial, imobiliário, de hipotecas, de arrendamento mercantil e de prestação de serviços, e os warrants, contratos e títulos referidos no § 8º do art. 40, desta Instrução;

Na mesma esteira, como a própria Lei da Nota Comercial dispõe que ela constitui um título de crédito, entendemos que os FIDCs podem adquiri-la para lastrear a emissão de suas cotas.

Quanto aos FIDCs, ainda vale mencionar a Resolução da CVM que está prestes a se tornar realidade, porque ela amplia o espectro de ativos que os Fundos poderão adquirir em suas carteiras, prevendo, além dos direitos creditórios, outros ativos financeiros, nos seguintes termos:

II – ativos financeiros:

a) títulos de emissão ou coobrigação do Tesouro Nacional;

b) valores mobiliários de renda fixa; e

c) ativos financeiros de renda fixa de emissão ou coobrigação de instituições financeiras;

Veja que a minuta da nova Resolução da CVM sobre Fundos prevê a possibilidade de aquisição de valores mobiliários de renda fixa, exatamente um dos conceitos da Nota Comercial, da Debênture e dos Certificados de Recebíveis.

Aqui vale esclarecer que a CVM, através do Ofício nº 6/2022/CVM/SER[6], não se posicionou contra a aquisição de Notas Comerciais pelos Fundos de Investimentos, muito pelo contrário, registrou que “apenas ressalta a importância de as regras sobre fundos de investimento a serem editadas em breve pela Autarquia.”. Com essa posição, entendemos que a CVM respondeu positivamente à aquisição de Notas Comerciais por Fundos de Investimentos, inclusive por FIDCs, apenas registrando a necessidade de observância da nova Resolução que está por vir, e que, como acima mencionamos, amplia o espectro de direitos creditórios e ativos financeiros que podem compor a carteira de um FIDC.

Pelo exposto, considerando que a Nota Comercial é um título de crédito comercial, e considerando que não há vedação legal nenhuma à sua aquisição por quem quer que seja, advogamos que esse novo recebível pode sim ser adquirido por Factorings, Securitizadoras e FIDCs, seja como objeto de operações de fomento ou como simples investimento em um título privado de renda fixa.


[1] Investidor qualificado é a pessoa, física ou jurídica, que tem mais de 1 milhão em aplicações financeiras. Investidor profissional é a pessoa, física ou jurídica, que tem mais de 10 milhões aplicados em investimentos. Ambos devem assinar um Termo de Investidor qualificado ou profissional, conforme o caso. Essas categorias estão reguladas pela Instrução CVM nº 554, de 17 de Dezembro de 2014.

[4] Art. 887. O título de crédito, documento necessário ao exercício do direito literal e autônomo nele contido, somente produz efeito quando preencha os requisitos da lei.

[5] Este conceito foi previsto antes no artigo 28 da Lei no 8.981/95, de 20 de janeiro de 1995. Ocorre que a Lei no 8.981/95 foi revogada pela Lei nº 9.249/95, de 26 de dezembro de 1995, que repetiu o conceito.


Por Clélio Gomes*


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